CRÔNICA:
A TOMADA DAS RUAS
Suely
Pavan Zanella
O sol brilhava naquela quase tarde de domingo. Nos
sentamos, os três, à mesa. Aquela mesa de sempre, a nossa preferida. Há uma
década, depois da tomada das ruas, escolhemos nos sentar sempre nela. Era uma
espécie de revolução particular. Hoje, diferentemente, de antes, podíamos
degustar nosso almoço dominical sem medo.
O restaurante ficava no centro de São Paulo, e a nossa
mesa, quase no meio da rua, na calçada. Dela víamos pessoas passeando
com os filhos e com seus cachorros antes do almoço. Casais de mãos dadas
passeavam tranquilamente. Não havia distinção social, e nem sequer nos preocupávamos
com isto. O importante era o tom de tranquilidade tão duramente conquistado.
Eu,
meu marido e nossa filha Maria Clara de catorze anos, apenas nos deleitávamos
observando os tranquilos passantes enquanto comíamos os deliciosos antepastos
oferecidos pelo restaurante. Este momento tranquilo nos garantia energia para
uma semana de trabalho e estudos.
Contávamos, eu e meu marido, como era a cidade de São Paulo
antes da tomada das ruas pelo povo, e a exigência de seus direitos. Ela ria e parecia
não acreditar. Ela não conseguia ver no meio daquela paisagem tão tranquila e
democrática que outrora as ruas da cidade haviam sido tomadas por bandidos. Não
acreditava que as casas tinham muros altos, e que a população vivia com medo e
cerceada em seus direitos mínimos de ir e vir. Para Maria Clara, era impossível
acreditar que pessoas maltratassem e matassem outras por celulares, carros e
outras “coisas”. Ela dizia:
- Mamãe, como assim? Coisas são apenas coisas. Estas
pessoas de antes deviam roubar e matar para comer. Elas deviam ser muito
pobres.
Maria Clara, às vezes, ingenuamente pensava tal como
estudiosos do passado. Eles diziam que a pobreza era justificativa para roubos e furtos!
Felizmente, descobriu-se a tempo que o aumento de
usuários de drogas na cidade foi responsável direto pelo aumento da violência
no passado. Hoje, quem quer usar drogas e faz em centros específicos e sob orientação
de médicos e psicólogos. O tráfico tão nocivo no passado, não existe mais. Hoje
quem trabalhava para ele tem novas recolocações profissionais. Investiu-se
alto em educação, mas também em repressão ao crime. Hoje o crime não compensa,
pois se corre o risco de ficar a vida toda na cadeia.
Em busca desta paz é que
a população finalmente tomou as ruas, que antes eram tomadas pelos bandidos.
Respondi o seguinte à Maria Clara:
- Filha você sabia que a época mais violenta da cidade,
na qual crimes bárbaros eram cometidos, foi justamente a mesma em que havia
vários empregos, principalmente para a população mais pobre?
Maria Clara me olhou surpresa e disse:
- Nossa mãe! Então ser bandido compensava, era “bonito”,
ou como você diz “glamouroso”?
- É isto mesmo, filhota!
Rimos muito desta observação dela enquanto víamos que
nosso almoço chegava fumegante.
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