sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

MALÉVOLA E O UNIVERSO FEMININO FERIDO


MALÉVOLA E O UNIVERSO FEMININO FERIDO

(Este texto contém spoilers)

 

“I know you, I walked with you once upon a dream
I know you
The gleam in your eyes is so familiar, a gleam
And I know it's true
That visions are seldom all they seem
But if I know you, I know what you'll do
You'll love me at once
The way you did once upon a dream”


 

Suely Pavan Zanella

 

A mesma mulher que acende velas para o teu anjo da guarda, fará o mesmo para o diabo, se você, por qualquer razão, a ferir”, dizia com sabedoria o falecido cantor Wando.

 

Nunca ninguém explicou direito por qual razão Malévola era tão fria e má no desenho animado A Bela Adormecida de Walt Disney de 1959. De onde vinha tanta malvadeza e desejo de vingança? Será que algumas mulheres já nascem ruins e perigosas?

 

Porém, a roteirista Linda Woolverton, deu vida, com maestria, à personagem Malévola, e a estória é contada do ponto de vista de Aurora (a Bela) já idosa.

 

O filme logo no início já mostra a divisão entre o reino do feminino constituído pelas fadas, a natureza e as relações pacíficas entre os seres, e o patriarcal, ou humano, em que só aparecem homens desejosos por conquistar o reino das fadas a qualquer preço. Em todas as pesquisas que fiz e faço sobre o Universo Feminino desde 2001 o patriarcado foi sempre retratado como o conquistador de terras, mesmo quando o sangue é derramado e o matriarcado como aquele que contém de diferentes formas a natureza e principalmente a harmonia. O filme também mostra que no reino que chamarei aqui de feminino há figuras aparentemente feias, mas que estão incluídas no reino. O que corrobora também com as minhas pesquisas em que a liderança feminina, por exemplo, é aquela que harmoniza o feio e o belo, o rico e o pobre, enfim, as diferenças. Muito diferente, portanto, dos termos encontrados por Joseph Rost (Leadership for the Twenty-First Century-1991) em uma pesquisa sobre liderança em que analisou 221 definições em livros, capítulos de livros, revistas e jornais entre 1900 e 1990 encontrando como recorrentes os seguintes termos: racional; gestão; masculina; quantitativa; hierárquica; pragmática e materialista.

Apesar das minhas pesquisas demonstrarem as diferença conceitual e prática  na forma de liderar entre o universo feminino e masculino, fiquei surpresa ao vê-las tão bem retratadas em um filme. Assunto, infelizmente, que pouca gente dá crédito ou valor.

Malévola a líder do reino feminino é ao mesmo tempo uma vilã e também aquela que salva e protege, o que mostra a dualidade principal do universo feminino. Há dentro de uma mulher conectada com seu universo feminino várias e diferentes mulheres.  Mas, quem enxerga, só vê duas a princípio. 

 

Agora, o que acontece com uma mulher enganada por seu amor verdadeiro (aparentemente) quando este lhe corta as asas?

Ela esfria e fica com raiva, muita raiva, e busca a princípio se vingar.

Não é isso que acontece com as mulheres feridas por um amor em que elas confiavam?

O universo feminino ferido normalmente encontra duas formas para lidar com a falta de liberdade (cortar as asas) e a traição dos seus sentimentos: O adoecimento ou a ira (a loucura inicial de Malévola).   

Neste texto abordarei apenas, em função do filme, o aspecto ira.

Malévola ao ver-se traída pelo ganancioso Stefan, que queria a qualquer preço tornar-se o rei dos humanos, lança no dia do batizado de sua filha Aurora uma maldição: Ao completar 16 anos a menina espetaria o dedo no fuso de um tear, e cairia em sono eterno. E só seria desperta através de um beijo de amor verdadeiro (coisa que Malévola não acreditava existir).  

O pai temeroso pela morte da filha manda que todas as rocas sejam destruídas, e que a menina seja cuidada pelas três fadinhas.

As três fadas, porém mostram-se totalmente despreparadas para cuidar de uma criança. E é Malévola que sempre à sombra a  acompanha, e apesar de odiá-la (é o que diz) lhe protege.

 

Durante os dezesseis anos o rei tenta sem sucesso acabar com Malévola. Quanto mais ele tenta, mais ela se protege e se cerca de árvores espinhosas. A escuridão em que Malévola se circunda me fez lembrar o mito grego de Deméter que ao ter a filha Perséfone sequestrada de tanto chorar por esta perda deixou árida a terra, e todos ficaram sem alimentos. Deméter só começou a melhorar quando encontrou Baubo( deusa suja da mitologia grega, ligada a obscenidade, à alegria e a sexualidade), que lhe deu vinho e lhe contou piadas sujas que fizeram com que Deméter risse e encontrasse uma forma de encontrar a filha sequestrada.

  

Ao completar 16 anos, porém, Aurora resolve ir morar no reino de Malévola, que tanto admirava. Ao tomar esta decisão precisa comunicar o fato às três fadinhas que cuidaram dela, e é aí que descobre que tem um pai e ele é o rei, e também fica sabendo da maldição traçada por Malévola contra ela no dia de seu batizado.

Aurora volta para o castelo do pai, e este a tranca em seu quarto, mesmo assim, ela ainda está sob a mira do feitiço de Malévola e hipnotizada espeta o próprio dedo no tear, e cai em sono eterno.

Malévola desesperada vai atrás de Aurora e leva junto o príncipe que a garota conhecerá na floresta.  Diaval, o fiel seguidor de Malévola, o corvo que ela transformou em homem quando o viu em risco mortal, acredita que o amor e o beijo do príncipe possam salvar Aurora da morte. Mas, o príncipe beija Aurora e nada acontece, provando que a paixão nada tem a ver com o amor verdadeiro. Malévola mostra todo o seu arrependimento pelo mal que causou a Aurora e lhe beija a testa com carinho. Aurora acorda de seu sono profundo. Só o amor verdadeiro é a luz capaz de tirar qualquer um, principalmente uma mulher ferida, de sua própria escuridão. O amor verdadeiro, como mostra o filme e também a vida, é um sentimento complexo que nem sempre está presente no amor romântico entre um homem e uma mulher. Na versão do desenho A Bela e a Fera, como na maioria das princesas da Disney e filmes americanos, sempre é o príncipe ou um homem forte e salvador que tira do perigo a indefesa princesa ou mulher desnorteada através de um beijo.

É importante ressaltar que o beijo que Malévola dá em Aurora está coberto de lágrimas, e que elas sempre são um símbolo de arrependimento verdadeiro, compaixão, ou seja, amor pelo outro. Quem ama verdadeiramente se compadece e sabe o dano que traz ao ser amado.

 

O amor verdadeiro é a claridade necessária que faz diminuir as dores e aplacar o medo. Crianças que não se sentem amadas, por exemplo, sofrem de pavores noturnos, que só são aplacados através do amor real. O amor verdadeiro cura feridas, enquanto o falso só as aumenta. E é assim, só assim, que o feminino ferido se cura!

 

O amor entre Malévola e Aurora era tão grande que é a última que devolve as asas à primeira. Através deste ato Malévola é capaz de lidar e exterminar seu maior algoz: O rei Stefan.

 

Aurora é proclamada por Malévola como a rainha dos reinos das fadas e dos humanos, unificando-os. E assim, sem guerras ou tristeza, a harmonia se faz. E é também desta forma que o Universo Feminino em sua essência funciona.

 

Filme belíssimo!

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